domingo, 10 de outubro de 2010

Receita para se viver bem após os 50 (caso não lhe tenha sobrado dignidade) - em resposta ao texto do pianista Aureo Galli (Naquele blog de merda).

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Quando você se olha no espelho e vê que está velho, coçando a barba, e tem uma mulher quase morta na cama, e tem que sair e trabalhar, se possível em um trabalho que não termine de te matar para que você possa continuar pagando as coisas convencionais: colégio das crianças, roupas da patroa e as despesas de motel onde se come sanduíche de pastrame a qualquer hora do dia ou da noite, e ainda há balinhas de hortelã grátis, você sempre tem uma luz no fim do túnel. É uma maravilha. O tipo de vida fácil de comprar. Por 1,99.
Sua vida não vale é um tapa na cara.
De qualquer forma, você pode arrumar um novo ofício, por que vai que você acha que sua vida é tão bacana que pode virar livro. Taí. Escreva. Escreve-se para tudo no mundo. Pra contar novidade, pra contar coisa velha, fazer arte, fazer homenagem, não ficar louco, ficar louco, cutucar os outros. A escrita é um direito de todos. Alguns demoram pra aprender c's, ç's, s's, 2 s's, z, ceagá e xis. Mas aprendem fácil e já podem sair por aí fazendo merda.
É fácil.
Primeiro, pegue um nome qualquer. Por exemplo, Ana Maria. Se achou muito normal, intercionalize a coisa pra soar inteligente. Anne Mary. UUUhhhh. Sentiu a diferença?
O segundo passo, é pegar um dicionário. Mas não se prenda muito nele pra não se confundir e cometer gafes. Aprenda pelo menos a palavra blasé. Se não achar no dicionário, procure no google. Ou pergunte pro seu jardineiro.
Depois pegue um carinha qualquer. Bem qualquer mesmo. Coloque-o fumando um cigarro já de cara e dê a ele cara de mau. Cara de mau encanta qualquer Ana Maria.
Escolha no que vai se basear. Se na vida real, se vai fazer ficção, se vai se inspirar no padeiro da esquina ou numas ex-namoradas entediadas, na sua mãe. Foda-se. Mas cuidado se escolher ficção. Não vá confundir realidade com ficção. Afinal você não quer que sua mulher leia e ache estranho, assim como não quer receber em casa uma caixa de papelão cheia de fotos, bilhetes já escritos, e mails, cartões, dvds, que alguma mulher já enganada por você sinta vontade de mandar depois de também ler suas porcarias falando mal dela. Às vezes você tem que considerar que já foi porco o suficiente, isso sem esquecer do quanto já pingou suor na cara da coitada até ela mentir que gozou pra você sair logo de cima dela. Cuidado ao expôr sua vida. Se a sua vida for de mentira, claro.
Agora você já tem dois personagens. Coloque-os em algum lugar. Nos anos 80, 50, 20, miloitocentosebolinha, no Egito, numa aldeia, na Mata Atlântica, na estrela onde mora o Pequeno Príncipe rodeado de baobás. Achou um bacana? Chegou a hora da ação. Eles tem que fazer alguma coisa, e se você encher de fodelança desde o começo, já ganhou a parada. Mas se você se decidiu por fazer um draminha, vai ter que ter diálogo. Muita churumela, mudanças de países, citação de trilha sonora (mas cuidado com as épocas - o Beck, por exemplo, e caso você não saiba, além de nome de droga também é um cantor contemporâneo, e ainda não tinha nascido em 1000 e blablablá. - Essa é uma dica muito importante). Também conjugue bem o verbo. Encha de "deixaste-ei" que sempre cola.
Cuidado com o que seus heróis dizem. Seu personagem inteligente pode virar um idiota e você não quer isso. Ele tem que salvar a mocinha no final, achar o amor, criar um papagaio.
A mocinha, claro, não precisa ser muito inteligente. Mas aí capriche na descrição, coloque pernas grossas, cachos dourados, cuzinho apertado.
Mas atenção: Você não está escrevendo um monólogo, cuidado pra não dar mais valor ao seu herói do que ele merece. A esse passo, pode ser que nem você o aguente mais, e então terá que matá-lo. E Shakespeare já fez isso antes. James Cameron também, qualquer um em cinema, livro ou teatro já fez isso antes de você. Ah, seja humilde, não se compare a grandes nomes.
Se bem, que se você fizer isso, quero dizer, matar seu herói, me poupa de ter que falar o resto. Então faça. Jogue todo mundo da ponte, pra ficar heróico. Você quer ser lembrado.
Depois, corra pro abraço e seja feliz. Se você não souber nada sobre felicidade (e for do tipo, que por isso mesmo, fica achando que ninguém mais é) está perdoado. Tem gente que procura a vida inteira e não encontra. Acontece bastante.
Aí você pode ficar na boa pagando a vida artificial pra sempre. Dizendo a todos que está cuidando das crianças. E quando você morrer, talvez alguém vá ao seu caixão pra dar um cuspe.
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